ASPECTOS DA COESÃO REFERENCIAL EM TEXTOS NARRATIVOS MÍTICOS: O CASO DA ANÁFORA INDIRETA.
Abstract
Heliud Luis Maia MOURA Este trabalho tem por objetivo analisar alguns aspectos da coesão referencial em textos narrativos míticos mais especificamente, no que diz respeito à anáfora indireta e seu modo de processamento na construção de textos referentes a entidades como o boto e o(a) curupira, tendo como base teórica os postulados da Linguística Textual, do Sociocognitivismo e da Semântica Cognitiva. Palavras-chave: anáfora indireta – coesão textual – Linguística Textual. This study aims to examine some aspects of referential cohesion in narrative texts mythical, more specifically, with regard to indirect anaphora and its mode of processing in the construction of texts pertaining to entities such as the dolphin and (a) curupira, based theoretical postulates of Textlinguistics of Sociocognitivismo and Cognitive Semantics. Keywords: Indirect Anaphora - textual cohesion - Textual Linguistics. 1.Introdução Este trabalho pretende apresentar aspectos da coesão referencial em textos narrativos míticos, tendo como elemento de discussão a questão da anáfora indireta e seu modo de funcionamento no processo de construção de textos referentes a entidades como o boto, e o (a) curupira.Tomo como base teórica os postulados da Linguística Textual, do Sociognitivismo e da Semântica Cognitiva. No âmbito da Lingüística Textual, Koch (2006) propõe que a coesão referencial consiste no processo de reconstrução de objetos previamente introduzidos no texto, de maneira a ter-se a formação de cadeias referenciais, as quais são responsáveis pela progressão do conteúdo informacional pretendido pelo produtor da ação verbal que está sendo posta em curso. Desse modo, a mencionada autora cita como estratégias de referenciação textual: o uso de pronomes, de expressões nominais definidas e de expressões nominais indefinidas. Estas duas últimas constituem objeto de investigação do presente estudo, já que atuam como elementos materializados textuais na atividade de referenciação das entidades míticas anteriormente citadas, observando-se, nesse processo, procedimentos de recategorização desses mitos. Logo, no âmbito da recategorização, a anáfora indireta atua na reconstrução de objetos-de-discurso, verificando-se também, nessa atividade, um atrelamento desses objetos a práticas sociais e culturais próprias das comunidades de onde as narrativas em estudo foram coletadas. Acrescente-se que, no processo de referenciação, a entidade ou fenômeno que está sendo recategoriado(a) está associado(a) a um determinado tipo de prática social, o que vai muito além de um mero procedimento de repredicação ou renomeação de um dado mito, já que tais recategorizações estão ligadas ao gerenciamento, mobilidade e instabilidade de conceitos nas interações dos diversos sujeitos sociais. Assim, o que se denomina coesão textual nominal estrita, em termos da superfície do próprio texto, pode implicar diferentes maneiras de recategorizar certos elementos, indo-se muito além de uma simples predicação, pois recategorizar implica estabelecer um outro sentido para uma entidade ou fenômeno, de forma a reconstruí-lo ou ressignificá-lo na sua relação com as práticas em curso numa determinada sociedade. 2.Fundamentos Teóricos 2.1 A Referenciação Segundo Marcuschi (2007), a referenciação é “uma ação interativa, construtiva e não representacional, possivelmente componencial, que fornece pistas de acesso para elaboração de sentidos’’ (Marcushi, 2007, p.101). Nessa perspectiva, proponho que a coesão referencial não é um processo de “costura” entre partes antecedentes e consequentes de um texto, mas, sim, um processo relacional construtivo e cognitivo no qual elementos discursivos de cunho interativo podem estar em simetria ou contraposição, de modo a resgatar ou indicializar ações sociais situadas de sujeitos culturais específicos. Koch (2006) afirma também que a referenciação constitui uma atividade discursiva. Assim, por ocasião da interação verbal, o sujeito opera sobre o material linguístico de que dispõe, fazendo escolhas significativas para construir ou reconstruir estados de coisas ou eventos, tendo em vista à viabilização de sua proposta de sentido. Por esse ângulo, os objetos-de-discurso não se confundem com o mundo extralinguístico, mas reelaboram-no na própria atividade interacional. Em outros dizeres, a realidade é construída, mantida ou transformada não apenas pelo modo como nomeamos as coisas do mundo, mas, sobretudo, pelo modo como, sociocognitivamente, operamos com a realidade, interpretando-a e construindo-a através da interação com o entorno biossocial e cultural. 2.2 A Anáfora Indireta Em se tratando das anáforas indiretas, a autora in cito propõe que estas caracterizam-se pelo fato de não haver no cotexto um antecedente explícito, mas sim um elemento de relação, às vezes uma estrutura complexa, que se pode nomear de âncora e que é central para a interpretação; noutros termos dizeres, “ trata-se de formas nominais que se encontram em dependência interpretativa de determinadas expressões da estrutura textual em desenvolvimento, o que permite que seus referentes sejam ativados por meio de processos cognitivos inferenciais, possibilitando [...] a mobilização de conhecimentos dos mais diversos tipos armazenados na memória dos interlocutores’’ (Koch, 2006, p.107). Marcuschi (2005) afirma que anáfora indireta é um caso de referência textual, ou seja, de construção, indução ou ativação de referentes no processo textual-discursivo que encampa atenção cognitiva conjunta dos interlocutores e processamento local. Uma análise dos aspectos caracterizadores da anáfora indireta evidencia o fato de que ela não está na dependência de uma gradiência morfossintática nem da necessidade de recuperar diretamente referentes já colocados na cadeia textual. Logo, segundo o citado autor, pode-se afirmar que o estudo das AI, além de constituir um expediente para rever as relações entre pragmática e cognição e requerer investigações mais acuradas sobre a noção de modelos mentais e funcionamento semântico da língua, leva a uma produtiva reformulação de noções como língua, categoria, referência, inferência, texto e coerência. Nesse âmbito, as anáforas indiretas constituem recursos primordiais no processo de (re)construção sociocognitiva e cognitivocultural de referentes, já que operam como pistas linguísticas de acesso a diversas formas de construção dos sentidos sociais. 3. Metodologia Para este estudo escolhi dois tipos de narrativa: uma referente ao boto e outra relativa ao curupira. A do boto consta do livro Santarém Conta, cuja produção fez parte do programa o Imaginário nas Formas Narrativas Populares da Amazônia, e a do curupira integra um conjunto de histórias coletadas no interior do Pará e é parte de um Projeto intitulado Gêneros Textuais e Ensino, vinculado à Faculdade de Letras da UFPA. Os textos das citadas narrativas demandaram reformulações quando de sua transposição para o escrito, sem perderem, no entanto, as características típicas de suas versões originais faladas, mais precisamente no que diz respeito aos fenômenos aqui analisados. 4. Análise Considerando as formas de construção da Anáfora Indireta, analiso nos textos acima apresentados os seguintes fenômenos, os quais estão baseados na classificação proposta por Schwarz, retomadas e acrescidas por Marcuschi (2005): 1. AI baseados em papeis temáticos dos verbos; 2. AI baseadas em relações semânticas inscritas nos SNs definidos; 3. AI baseadas em esquemas e modelos mentais; 4. AI baseadas em inferências ancoradas no modelo do mundo textual; 5. AI baseadas em elementos textuais ativados por nominalizações; 6. AI esquemáticas realizadas por pronomes introdutores de referentes; Texto 1. Lenda do Boto No Igarapeaçu no município de Santarém tinha lá um senhor que tinha uma filha... garota, menina moça... aí ele desconfiou que ela fazia uma zuada pro quarto dela, desconfiou com alguma coisa... MANDOU BENZEDEIRA SEI LÁ O QUEM; esse pessoal que sabe benzer, sabem rezar nas pessoas e disseram pra ele que a menina estava namorando o boto... e que ele tivesse cuidado porque o boto poderia levar... a garota... aí ele disse: o que ele poderia fazer? Que fizesse umas defunções... de chifre; NÃO SEI MAIS DE QUE... aí ele entendeu... usou o que a mulher tinha recomendado né pra fazer defunções pra espantar... não, não deu certo, não funcionou... aí disseram pra ele que esperasse esse bicho no caminho, na estrada que vinha do igarapé... Igarapeaçu... o nome do igarapé... e que esse bicho se fosse o boto, que ele vinha... certa hora da noite poderia esperar que ele vinha, ele subia pelo caminho... aí ele falou pro cidadão lá que fosse fazer essa experiência né? Fazer esse teste... de esperar o boto, se ele viesse que ele podia matar... Aí toda aquele pessoal por lá em determinada hora da noite todo mundo se quietavam e já tinham conhecimento das pessoas quando... quando tinha uma pessoa assim no luar... que era luar, noite de luar e já sabiam mais ou menos quem era pelos traços... pelo jeito de andar, então... corria risco de atirar numa uma pessoa qualquer né? Aí o cidadão foi, se preparou com um rifle... rifle é um de 44 que usava doze balas... A BALA É VIOLENTA... então se preparou lá no caminho... ficou esperando desde a boca da noite e aí quando foi umas nove pras dez horas da noite ou umas dez pras onze, já meio tarde né... quando ele viu lá vinha o cabra subindo... no caminho o cabra vinha andando muito lento, muito lento; vinha andando devagar, MAS ERA UM HOMÃO, PORRETE DE UM HOMEM... roupa toda branca... veio, veio, veio... ele se ajeitou bem lá na; quando chegou uma distância boa... ele aplicou-lhe a pitombada no meio do peito...pá! Aí ele atirou no bicho pegou uma distância... ele levantou e chutou no rumo do rio... de carreira ele correu atrás... foi chegando perto do rio... foi chegando perto do rio... lá na beira do rio mesmo ele se jogou n’água... kebum!!! n’água... aí ele voltou pra casa... chegou lá era um compadre dele o cara... compadre eu atirei no bicho... caiu n’água, era o boto mesmo! Que ele caiu n’água... aí não vi mais movimento nenhum... só sei que atirei nele. Ele correu, eu vi o barulho da queda na água... eu não sei, vamos ver amanhã como é das coisas... e aí passou-se a noite quando foi de manhã cedo foi a primeira coisa... eles foram pra beira do rio; ele estava pelo lado de baixo onde a correnteza ia... tava prancheado numas galheira de pau, de peito pra cima; um monstro de boto vermelho de peito pra cima com um rombo no meio do peito. ELE NÃO MORRE EM TERRA DIZEM; ele só morre caindo n’água. Caindo na água MAS acabou e a menina acabou e ficou sadia; já estava ficando amarela, pálida não... acabou que... acabou a história do boto. Veja-se os exemplos: 4.1 AI BASEADAS EM PAPEIS TEMÁTICOS DOS VERBOS. (i) aí ele desconfiou que ela fazia uma zuada pro quarto dela, desconfiou alguma coisa... MANDOU BENZEDEIRA SEI LÁ O QUEM esse pessoal que sabe benzer, sabem rezar nas pessoas e disseram pra ele que a menina estava namorando o boto... e que ele tivesse cuidado porque o boto poderia levar... a garota... aí ele disse: o que ele poderia fazer? Que fizesse umas defumações... de chifre NÂO SEI MAIS DE QUE... aí ele entendeu... usou o que a mulher tinha recomendado né pra fazer defumações pra espantar... não, não deu certo, não funcionou... Observe-se como o papel temático do verbo espantar retoma anaforicamente todo um conjunto de expressões nominais que estão implícitas no uso anafórico desse verbo. 4.2 AI BASEADAS EM RELAÇÕES SEMÂNTICAS INSCRITAS NOS SNs DEFINIDOS. (ii) Aí o cidadão foi, se preparou com um rifle... rifle é um de 44, que usava doze balas... A BALA É VIOLENTA... então se preparou lá no caminho... ficou esperando desde a boca da noite. (iii) MAS ERA UM HOMÃO, PORRETE DE UM HOMEM... roupa toda branca... veio, veio,veio... ele se ajeitou bem lá na; quando chegou uma distância boa... ele aplicou-lhe a pitombada no meio do peito... pá! Aí ele atirou no bicho pegou uma distância... Observe-se como as relações meronímicas (relações parte-todo) instauram processos anafóricos de continuidade ou progressão textual no que diz respeito ao processo construtivo/constitutivo dos sentidos pretendidos pelo produtor da atividade verbal que está em curso. 4.3 AI BASEADAS EM ESQUEMAS COGNITIVOS E MODELOS MENTAIS. (iv) A BALA É VIOLENTA... então se preparou lá no caminho... ficou esperando desde a boca da noite e aí quando foi umas nove pras dez horas da noite ou umas dez pras onze, já meio tarde né... quando ele viu lá vinha o cabra subindo... no caminho o cabra vinha andando muito lento, muito lento; vinha andando devagar, MAS ERA UM HOMÃO, PORRETE DE UM HOMEM...roupa toda branca... veio, veio, veio... ele se ajeitou bem lá mas quando chegou uma distância boa... ele aplicou-lhe a pitombada no meio do peito... pá! (v) Fazer esse teste... de esperar o boto se ele viesse que ele podia matar... Aí todo aquele pessoal por lá em determinada hora da noite todo mundo se aquietavam e já tinham conhecimento das pessoas quando... quando tinha uma pessoa assim no luar... que era luar, noite de luar e já sabiam mais ou menos quem era pelos traços... pelo jeito de andar, então... corria o risco de atirar numa pessoa qualquer né? Aí o cidadão foi, se preparou com um rifle...[...] quando ele viu lá vinha o cabra subindo... no caminho o cabra vinha andando muito lento, muito lento; vinha andando devagar, MAS ERA UM HOMÃO, PORRETE UM HOMEM... roupa toda branca... veio, veio, veio... Assim de acordo com os exemplos, as retomadas em relação à bala violenta e boto estão ancoradas em reconfigurações conceituais ou relações cognitivas eucapsuladas em modelos mentais geralmente denominados de frames (culturais e/ou sociais), cenários, esquemas, scripts etc, que reconstroem focos emplícitos armazenados em nossa memória de longo prazo como conhecimentos de mundo organizados ou já estruturados culturalmente. Tais conhecimentos não são necessariamente conectados a itens lexicais específicos, mas constituem uma espécie de rede de estruturas semânticas que “ordenam” determinados saberes ou visões acerca do mundo social e/ou cultural. 4.4 AI BASEADAS EM INFERÊNCIAS ANCORADAS NO MODELO DO MUNDO TEXTUAL. (vi) vinha andando devagar MAS ERA UM HOMÃO [...]... roupa toda branca...[...] quando chegou uma distância boa... ele aplicou-lhe a pitombada no meio do peito... pá! Aí ele atirou no bicho pegou uma distância... ele levantou e chutou no rumo do rio... de carreira ele correu atrás... foi chegando perto do rio... foi chegando perto do rio... lá na beira do rio mesmo ele se jogou n’água... kebum!!! n’água... aí ele voltou pra casa... chegou lá era um compadre dele o cara... compadre eu atirei no bicho... caiu n’água, era o boto mesmo! Que ele caiu n’água... aí não vi mais movimento nenhum... só sei que atirei nele. Ele correu, eu vi o barulho da queda na água... eu não sei, vamos ver amanhã como é das coisas... Embora expressões como um homão e roupa toda branca, por si sós, não definam que se trata de uma história mítica de boto, no decorrer do processo de condução do texto, expressões como: ele levantou e chutou no rumo do rio; ele se jogou n’água; o bicho caiu n’água; era o boto mesmo; ele caiu n’água etc + as duas expressões iniciais, conjuntamente demarcam ou indicializam, a partir do cotexto, que não se trata simplesmente da história de um boto animal, mas de uma narrativa de cunho mítico, na qual o ente boto se transforma em homem e seduz as mulheres (ou os homens). Assim, o “modelo” do mundo textual referente a histórias míticas de boto já prevê esse tipo de ancoragem, ou seja, aquele em que determinados elementos ou expressões do texto levam a significados relacionados a uma entidade (boto), que se transforma em ser humano e vice-versa, o qual, por sua vez, possui um estatuto simbólico de encantamento ligado ao plano sexual-amoroso, mas que se pode ser desencantado, mais precisamente se esse homem-boto for morto dentro d’água (rio). 4.5 AI BASEADAS EM ELEMENTOS TEXTUAIS ATIVADOS POR NOMINALIZAÇÕES OU EXPRESSÕES NOMINAIS DEFINIDAS. (vii) Aí disseram pra ele que esperasse esse bicho no caminho do igarapé... Igarapeaçu... o nome do igarapé...e que esse bicho se fosse o boto, que ele vinha... certa hora da noite poderia esperar que ele vinha, ele subia pelo caminho... aí ele falou pro cidadão lá que fosse fazer essa experiência né? Fazer esse teste... de esperar o boto se viesse que ele podia matar... Mesmo não sendo derivados de lexema idêntico, ou seja, do verbo esperar, as nominalizações ou expressões nominais essa experiência e esse teste instauram uma força ilocutória direcionada para a descrição definida dos fatos anteriormente colocados na cadeia textual, de forma a reafirmá-los e caracterizá-los de maneira precisa e objetiva dentro do conjunto informacional pretendido pelo locutor do texto. Por conseguinte, tais anáforas têm a propriedade resumitiva e encapsuladora em relação aos fatos antes antes descritos, qualificando-os de maneira mais pontualizada. 4.6 AI ESQUEMÁTICAS REALIZADAS POR PRONOMES INTRODUTORES DE REFERENTES. (vii) ELE NÃO MORRE EM TERRA DIZEM; ele só morre caindo n’água. Na proposição metaenunciativa em destaque, a forma verbal dizem introduz a forma pronominal elíptica eles, que remete a referentes não colocados anteriormente no contexto, mas que são passíveis de serem ativados mediante estratégias inferenciais ligadas ao contexto no qual a narrativa se situa. Assim, a introdução do referente ligado à proforma pronominal ou nominal ativa o contexto enunciativo a partir do qual a atividade é produzida ou constituída. Observe-se, agora, o Texto 2: Curupira (Em que lugares e porque aparece o(a) curupira.) Eu tinha um amigo que se chamava Antônio. Esse colega hoje é casado. Saímos pra caçar e eu levei um pouco de cachaça num vidro. Aí ela passou perto de mim e fez cococococo-trum. Então eu disse assim: – Minha vó, me dê uma caça, que eu não posso demorar. E esse colega meu disse assim pra mim: – Rapaz, que negócio de vó, eu não estou vendo ninguém aí. Eu agarrei, botei a cachaça na cabeça de um toco e deixei ele pra trás e fui embora pra frente Quando eu cheguei numa certa mediação, escutei o grito, ai, ai, ai, ai e vap, vap, batendo. Eu fiquei assim. No duro ela está dando nele. Justamente, quando eu cheguei lá, ele estava caído no chão apanhando, mas apanhando mesmo. Aí, pra ela não bater nele, o jeito foi eu cortar um cipó que nos chamamos assim, na mata, que é o cipó chamado caipiró. Em português é chamado timbuaçu. Eu cortei o caipiró lá, fiz cruz e deixei lá. Ela ficou entretida, só que você não vê ninguém, vê? Ela é invisível. É um ser. Então, eu deixei ela ali, peguei no braço dele. Eu estava com um dente de alho no bolso, passei no corpo dele. Ele olhou pra mim e disse: – Galiby eu não aguento mais, estou muito com febre e dor de cabeça. Eu disse: – Rapaz, então faz o seguinte, eu vou te deixar no caminho. Tu acerta ir só tu pra casa? Não era muito longe, mas dava... Ele disse: – Não, eu estou com muita febre. Eu agarrei, fui deixar ele na casa dele. Nessa época ele era solteiro. Aí eu chamei o pai dele que chamava-se “Seu” Joaquim. E o nome da senhora mãe dele chamava-se “Dona” Terezinha, uma senhora já idosa e era acostumado eu chamar pra ela de minha madrinha. Ela disse: – O que foi? Eu disse: – Olha, a curupira deu muito no Antônio e ele está com muita febre e dor de cabeça, e eu já vou voltar que eu tenho que matar uma caça, que não tenho nada pra me alimentar. Aí, ele ficou e eu fui embora. Quando foi na hora da noite, ele dizia que aparecia uma velha, mas uma velha muito feia, dando nele. E lá vem a velha. E eu disse: – Se você não levar ele pra benzer, vai acabar por morrer louco. Considerando o texto acima, vejamos os seguintes tipos de anáfora indireta aí expressos: 4.7 AI REALIZADAS POR PRONOMES CUJO ELEMENTO PROPRIAMENTE ANAFORIZADO É DE NATUREZA EXOFÓRICA OU CONTEXTUAL, PODENDO SER APENAS INDICIALIZADO POR UM OU OUTRO ELEMENTO VERBAL OU NOMINAL. (viii) Eu tinha um amigo que se chamava Antônio. Esse colega hoje é casado. Saímo pra caçar e eu levei um pouco de cachaça num vidro. Aí ela passou perto de mim e fez cococococo-trum. Então eu disse assim: - Minha vó, me dê uma caça, que eu não posso demorar. Veja-se que o pronome ela introduz um referente não dado diretamente pelo cotexto, mas que pode se ativado através de inferências baseadas em frames ou enquadres de âmbito cultural. As expressões anaforizadas saímos pra caçar e levei um pouco de cachaça num vidro apenas indicializam que se trata da curupira, pois a retomada desse referente depende muito mais da ativação de estruturas conceituais e cognitivoculturais, que estão na base da interpretação do texto, pelo menos considerando o modo como o referente em jogo é aí introduzido. 4.8 AI REALIZADAS POR EXPRESSÕES NOMINAIS DEFINIDAS OU INDEFINIDAS ANCORADAS EM ESTRUTURAS CONCEITUAIS DE NATUREZA CULTURAL. (ix) Saímos pra caçar e eu levei um pouco de cachaça num vidro. Aí ela passou perto de mim e fez cococococo-trum. Então eu disse assim: ____ Minha vó, me dê uma caça, que eu não posso demorar. E esse colega meu disse assim pra mim: ____Rapaz, que negócio de vó, eu não estou vendo ninguém aí. As expressões nominais minha vó, me dê uma caça e que negócio de vó ancoram o referente a curupira. No entanto, essa relação anafórica está baseada em frames culturais, a partir dos quais existe uma associação entre minha vó = senhora idosa = me dê uma caça = a curupira. Tal associação não requer uma explicitação direta, pois determinados construtos cognitivoculturais já levam à ativação do referente que está em curso, que passa a ser reconhecido através dos elementos nominais indiciadores presentes na superfície do texto. 4.9 AI BASEADOS EM ELEMENTOS DÊITICOS QUE REMETEM AO CONTEXTO E QUE NÃO ANCORADAS EM SEGMENTOS TEXTUAIS. (x) E esse colega meu disse assim pra mim: ___ Rapaz, que negócio de vó, eu não estou vendo ninguém aí. A forma aí não ativa ou recupera diretamente nenhum elemento do texto. Assim, sua função anafórico-mostrativa reside mais em referir uma espécie de espaço psicológico ou virtual do locutor do texto em relação a uma situação ou contexto mais amplo em que é proferido o enunciado. Portanto, anáforas indiretas desse tipo têm a função de remeter a uma situação abstrata na qual o discurso se insere, e não de localizar um referente lexical ou textual já posto na cadeia do texto. 4.10 AI BASEADAS EM ENQUADRES COGNITIVOCULTURAIS. (xi) Eu disse: ____ Olha, a curupira deu muito no Antônio e ele está com muita febre e dor de cabeça, e eu já vou voltar que eu tenho que matar uma caça, que não tenho nada pra me alimentar. Aí, ele ficou e eu fui embora. Quando foi na hora da noite, ele dizia que aparecia uma velha, mas uma velha muito feia, dando nele. E lá viu a velha. E eu disse: _____ Se você não levar ele pra benzer, vai acabar por morrer louco. Conforme se pode observar, as expressões uma velha, uma velha muito feia e a velha não ativam diretamente a expressão a curupira, não é um caso de correferência. No entanto, levam indiretamente a esse tipo de relação conceitual, dentro outros sentidos ligados à socioconstrução dessa entidade mítica. Logo, é necessário que haja um pré-conhecimento de determinadas elaborações conceituais/culturais relativas a esse ente para que se possa estabelecer a relação entre as expressões nominais acima destacadas e a entidade em questão. 4.11 AI ESPRESSOS POR DÊITICOS CUJO REFERENTE É, AO MESMO TEMPO INTRATEXTUAL E EXTRATEXTUAL. (xii) Eu disse: ___ Olha, a curupira deu muito no Antônio e ele está com muita febre e dor de cabeça, e eu já vou voltar que eu tenho que matar uma caça, que não tenho nada pra me alimentar. Aí, ele ficou e eu fui embora. Quando foi na hora da noite, ele dizia que aparecia uma velha, mas uma velha muito feia, dando nele. E lá vem a velha. E eu disse: ___ Se você não levar ele pra benzer, vai acabar por morrer louco. A forma pronominal você não ativa diretamente nenhum elemento já posto no cotexto, mas aponta muito mais para o contexto enunciativo no qual o locutor se insere. Portanto, sua função é mais caráter dêitico-extratextual; sem deixar no entanto, de ter uma característica de remissão anafórica para um ou outro elemento já colocado na cadeia textual. Essa dupla e ambígua propriedade textual-discursiva de você, no exemplo em questão, o insere no rol daqueles operadores referenciais cujo estatuto discursivo oscila entre dêitico exofórico e elemento anafórico não precisamente ancorado neste ou naquele antecedente posto no texto, mas podendo, também, estar ancorado em ambos. 5. Considerações Finais. Tendo por base as análises prévias aqui realizadas, postulo que a anáfora indireta constitui um recurso fundamental para o processo de construção de textos orais e escritos, pois ela opera como uma unidade discursiva mantenedora e integradora das relações de coerência e sentido, conferindo a estes a estabilidade necessária à realização dos significados da atividade verbal e requeridos por seu leitor/interpretante. O link indireto existente entre esse tipo de anáfora e seu referente/antecedente proporciona ao texto uma dinâmica e uma “agilidade” no que concerne aos processos de interpretabilidade, os quais, queiramos ou não, são largamente dependentes de fatores contextuais, pragmáticos, situacionais e cognitivoculturais. No caso das narrativas aqui preliminarmente estudadas, esses fatores constituem espécies de elementos realizadores ou ancoradores dos processos de interpretação, a partir dos quais é possível recuperar alguns sentidos veiculados por textos de cunho mítico. Tais sentidos estão, em grande parte, engatilhados em frames e enquadres culturais. O “reconhecimento” desses enquadres constitui um fator norteador no que diz respeito aos conceitos veiculados por essas instâncias enunciativas, que regulam práticas sociais típicas dos ambientes onde são produzidas. Por conseguinte, esses fatores de contextualização atuam de maneira muito mais efetiva na construção desse tipo de narrativa, podendo-se prevê uma presença maior de anáforas indiretas, cujas características e especificidades podem proporcionar uma configuração particular aos textos das histórias sob investigação, de modo a requerer, também, um estudo mais aprofundado acerca desses operadores de progressão referencial. 6. Referências Bibliográficas KOCH, Ingedore G. Villaça. 2006a. Desvendando os segredos do texto. São Paulo: Cortez. KOCH, Ingedore G. Villaça. 2006b. Introdução à linguística textual.São Paulo: Martins Fontes. MARCUSCHI, Luiz Antônio. 2005. Anáfora indireta: o barco textual e suas âncoras. Em: KOCH, Morato e Bentes (Orgs. 2005). Referenciação e discurso. São Paulo: Contexto. MARCUSCHI, Luiz Antônio. 2007. Cognição, linguagem e práticas interacionais. Rio de Janeiro: Lucerna.Downloads
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2011-12-02
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Artigos